
“Vejo essa senhora com flores amarelas…”
Papa Francisco: sacramento do “Deus que vê”
Por Pe Fabio da S Siqueira
Penso que todos nós nos recordamos com bastante emoção da cena que se deu no dia 23 de março, quando o Santo Padre, ainda internado no Hospital Gemelli, viu uma senhora, Carmela Vittoria Mancuso, de 78 anos, que portava em suas mãos um buquê de flores amarelas. Olhando-a diretamente, o Papa Francisco disse: “Vejo essa senhora com as flores amarelas! È brava! (É uma boa pessoa!)”
Mesmo com dificuldade para respirar, recuperando-se de uma enfermidade tão grave e duradoura, o Santo Padre notou uma pessoa específica no meio da multidão. E não apenas notou essa senhora, mas disse algo muito particular: È brava! (É uma boa pessoa!). De fato, o Papa Francisco foi um sacramento do “Deus que vê”.
A consciência de que Deus “vê” todas as coisas é muito forte no Antigo Testamento. Poderíamos evocar várias passagens, mas me detenho em duas. A primeira está em Gn 16: a saga de Agar. Sarai, mulher de Abrão, era considerada estéril e buscou uma solução: dar sua escrava como mulher a Abrão para que esta lhe gerasse descendência. Contudo, depois que Agar ficou grávida, sua sorte mudou. Sentindo-se tratada com desprezo, Sarai acabou por maltratar tanto sua escrava que esta resolveu fugir. No meio do deserto, veio ao seu encontro o “anjo do Senhor”, que lhe aconselhou e prometeu multiplicar grandemente sua descendência. Ao Senhor, que lhe aparecera, Agar chamou “El Roí”, o “Deus que vê” ou “Deus da visão”, e afirmou: “Vejo eu ainda aqui, depois daquele que me vê?” (Gn 16,13).
O segundo episódio está em Ex 3,7. Deus aparece a Moisés e, do meio da sarça, afirma: “Ver eu vi a miséria do meu povo que está no Egito.” Ver eu vi (sic) é o que diz o texto. O uso do infinitivo acompanhado do verbo conjugado é uma forma de dar ênfase à ação. Deus “realmente viu” a miséria do seu povo. Na continuação do texto, Ele afirma que “ouviu seu clamor” e, por isso, “desceu a fim de libertá-lo” das mãos dos egípcios.
Esses dois episódios nos colocam diante do mistério e da beleza do “Deus que vê” a situação de grande aflição na qual se encontra tanto uma pessoa em particular, Agar, quanto o povo em seu conjunto. Nada escapa ao olhar divino: nem as misérias da coletividade, nem as aflições que cada pessoa padece.
Também no Novo Testamento, Jesus aparece como “aquele que vê”. Em Mateus 4,18, o evangelista afirma que Jesus, ao passar pelo Mar da Galileia, viu dois irmãos, Simão e André. Eram pescadores, e Ele os chamou para segui-lo. Ainda no mesmo evangelho, em Mt 8,14, afirma-se que Jesus “viu a sogra de Pedro”, que estava enferma, e lhe devolveu a saúde. Marcos 2,5 diz que Jesus “viu” a fé do paralítico. Um pouco mais adiante, em Mc 5,32, depois de ser tocado e sentir que uma força saíra d’Ele, Jesus olha em volta para “ver” quem o havia tocado. Em Lucas 19, Zaqueu sobe numa árvore para “ver” Jesus, mas é o Mestre quem “levanta os olhos” e, vendo-o, convida-o a descer depressa para que Ele possa tomar refeição em sua casa. Em João 8,1-11 não aparece o verbo “ver”, mas podemos imaginar o encontro de olhares entre o Senhor e a mulher que, n’Ele, reencontrou sua dignidade roubada. Por fim, como não nos comover diante do Cristo que, em Jo 19,26, do alto da cruz, “vê sua mãe”? Sua atitude é a mais oblativa possível nesse momento derradeiro: Ele a confia ao discípulo, e confia o discípulo à sua mãe.
Fica patente, pois, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, que Deus é “aquele que vê”. Ele vê a miséria do seu povo, mas também olha cada um individualmente. Ninguém, sobretudo os sofredores, passa despercebido ao olhar divino. Afinal, Ele é aquele que “vê a fadiga e a miséria” do ser humano (Sl 25,18) e que jamais oculta sua face “ao que sofre sem amparo” (Sl 22,25).
Esse episódio no Hospital Gemelli, que recordamos acima, é um dentre tantos em que podemos ver que o Papa Francisco tornou-se um “sacramento”, um “sinal visível” do “Deus que vê”. Ele “viu” a situação calamitosa do planeta e se debruçou sobre a questão ecológica; “viu” a miséria de tantos grupos ainda marginalizados na Igreja e foi capaz de abrir caminhos nunca antes desbravados, como fez com documentos importantes como Amoris Laetitia ou, ainda, permitindo a publicação da Declaração Fiducia Supplicans; “olhou com ternura” para a figura da mulher, colocou várias em postos de liderança dentro da Igreja e nos apresentou a Igreja como uma casa com portas abertas — “porque é Mãe”, ele afirmava. Poderíamos elencar tantas e tantas situações em que isso se constata: Francisco, servo dos servos de Deus, sacramento do Deus que vê!
Hoje choramos sua partida. Na Páscoa, ele fez sua Páscoa! Possamos nos fixar em seus ensinamentos e em seus exemplos. Não sejamos cegos às necessidades dos outros. Que sejamos também nós pessoas-sacramento, pessoas-sinal do “Deus que vê”. Tanto há para ser visto ao nosso redor! Se olharmos com atenção, quantas necessidades! Que o Deus que “nos vê” nos ajude a perceber tanto que somos vistos por Ele — do mesmo modo que Francisco viu a Sra. Carmela no meio da multidão — quanto que devemos também “ver” os que nos cercam, “ouvir” seus clamores e ser, na vida de cada um e de cada uma, um sinal vivo da presença do Senhor.